setembro 03, 2008

[ ao som de "Cold Cold Heart" | Norah Jones]

Forço-me a escrever, porque tenho de desabafar, de dizer alguma coisa, de dar um berro maior que tu, minha pequena, minha doçura de pessoa, meu amor. Estou farto deste tempo que dizes precisar, da tua falta, da tua ausência. Porque imagino mil e uma coisas, nestas noites que também já parecem mil e uma, mas são apenas uma e meia.
Apetece-me falar contigo, mas são as paredes brancas, de um branco que sempre desejaste e eu abominei, que me rodeiam e são minhas companheiras. Elas ouvem tudo mas não falam, ouvem tudo mas não choram, ouvem tudo e ensurdecem-me. Atiro-lhes um copo que as mancha de vermelho sangue, acompanhado por um gemido e finalizado com uma lágrima ou lágrimas, muitas lágrimas.
Olho para uma página em branco, húmida e ensanguentada. Olho para uma página que parecem duas ou três, olho para um mundo vermelho em redor que parece turvo, olho para uma foto e imagino-te aqui. Ao pé de mim, atrás e à frente, a rir, a chorar, a gemer e a gritar, a gostar de ser feliz. Mas essa noite não é hoje. Sei isso.
Trôpego, demasiado se calhar, caio mais uma vez, por cima de um sofá sujo, ouvindo uma música sempre presente demais, como se a realidade fosse uma coisa capaz de invadir corpos e sentimentos, usurpadora de tudo, mesmo dos meus sonhos e pecados, mesmo até de ti. Porque é a realidade desta meia noite de hoje e de toda a de ontem, que te leva para longe de mim, por pretexto de um tempo interminável, que não acredito poder acabar, que sei não ir acabar nunca.
A garrafa está agora longe demais e o copo está partido.
Eu amo-te e tu respondes com uma palavra que não rima com as minhas e muita menos as completa. Dizes que a culpa é só minha. E fecho os olhos – querendo só isso neste momento: fechar os olhos –, tapo os ouvidos e deixo que as paredes caiam em cima de mim.
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[ao som de Fly me to the moon|Michael Buble ]

O POETA E A LUA
Em meio a um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esfera nitentes
Tremeluzem pelos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água
Palpita a ferida crua
O poeta todo se lava
De palidez e doçura.
Ardente e desesperada
A lua vira em decúbito
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua.
O poeta afaga-lhe os braços
E o ventre que se menstrua
A lua se curva em arco
Num delírio de luxúria.
O gozo aumenta de súbito
Em frêmitos que perduram
A lua vira o outro quarto
E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens
Nos ventos do mar perpassa
Um salso cheiro de lua
E a lua, no êxtase, cresce
Se dilata e alteia e estua
O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E míngua e se apazigua...
O poeta desaparece
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece
No seu claustro de ciúmes.
[Vinicius de Moraes]
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